15/09/2025

Decisão do STJ convida a repensar transmissão de bens digitais no Brasil

Por: Danilo Vital
Fonte: Consultor Jurídico
A decisão do Superior Tribunal de Justiça que previu a figura do inventariante
digital oferece uma boa oportunidade para uma necessária reavaliação da
transmissão de bens digitais no Brasil, de acordo com a análise de advogados
ouvidos pela revista eletrônica Consultor Jurídico.
Tratamento de bens digitais no caso de morte não está previsto em lei no Brasil
e passa por processo de adaptação
Isso porque a posição firmada pela 3ª Turma do STJ já consistiu em uma
adaptação, diante da completa ausência de normas sobre o tratamento de
informações digitais deixadas por pessoas que morrem.
O colegiado estabeleceu que é possível a nomeação de um perito — chamado
pela ministra Nancy Andrighi de inventariante digital — para extrair dados de
dispositivos dos falecidos e decidir o que tem conteúdo patrimonial e, com isso,
pode ser transmitido e inventariado.
O Código Civil não regula a herança digital. O tema é central na proposta do
PL 4/2025, que reforma o código e o adapta aos avanços tecnológicos, como
já mostrou a ConJur. Outras normas, como o Marco Civil da Internet e a Lei
Geral de Proteção de Dados, são insuficientes.
Classificação de bens digitais
Segundo Felipe Russomanno, sócio do escritório Cescon Barrieu, isso resulta
em ausência de procedimentos claros para acesso aos dados do falecido, falta
de critérios para distinguir bens transmissíveis e conflitos entre direitos
sucessórios e da personalidade de quem morreu.
Mesmo a classificação jurídica dessas informações é controversa. Hoje, ela se
divide em:
— Bens patrimoniais digitais (criptomoedas, contas bancárias);
— Bens existenciais digitais (fotos, mensagens, redes sociais);
— Direitos digitais da personalidade (dados íntimos, correspondências
privadas).
“A tendência aponta para a necessidade de uma regulamentação específica que
defina claramente bens digitais transmissíveis, estabeleça procedimentos para
inventário digital e equilibre a proteção entre direitos sucessórios e da
personalidade, conferindo segurança jurídica às relações sucessórias digitais”,
avalia Russomanno.
O professor Marcelo Mazzola cita o projeto de reforma do Código Civil, que
traz algumas disposições sobre o tema, mas não aborda todas as suas
controvérsias, nem tampouco disciplina o procedimento. “Daí porque a recente
decisão do STJ finca uma baliza importante. Essa sistemática serve de norte e
pode ajudar a equalizar os interesses em jogo.”
Rodrigo Forlani Lopes, do Machado Associados, acrescenta que a proposta
do novo Código Civil tem conceitos ainda vagos, como a ideia de valor
economicamente apreciável, que já foi criticada por sua imprecisão. “Enquanto
isso, a jurisprudência decide caso a caso, o que gera decisões díspares e falta de
previsibilidade. A decisão do STJ é inovadora, mas não resolve essa lacuna e
pode, inclusive, aumentar a litigiosidade.”
Caminhos possíveis
Esse cenário faz com que existam caminhos possíveis, mas não garantidos, para
quem quiser preservar a própria intimidade por meio da restrição ao acesso a
arquivos digitais após a morte. Aracy Barbara, sócia na área de Planejamento
Patrimonial e Sucessório do VBD Advogados, cita três hipóteses:
— Incluir disposições expressas em testamento determinando a exclusão ou
restrição de acesso, ou nomear um testamenteiro que tenha também poderes
específicos para essa finalidade;
— Utilizar ferramentas das próprias plataformas digitais, como o Instagram,
que permitem configurar o destino da conta, inclusive indicar um futuro
responsável pelo perfil;
— Recorrer a criptografia ou softwares de autodestruição de dados, embora
com limitações práticas e até jurídicas.
“Vale ponderar que as decisões do Judiciário ainda não conseguiram evoluir tão
rapidamente quanto a expansão da tecnologia. Ademais, ainda não há a previsão
sobre viabilidade de acesso a dados digitais em inventários extrajudiciais.
Contamos apenas com projetos de lei em tramitação no Senado”, explica a
advogada.
Felipe Russommano acrescenta que as principais plataformas digitais oferecem
ferramentas específicas para gestão post mortem, como o Gerenciador de Conta
Inativa do Google, as opções do Facebook para transformar perfis em conta
memorial e o Contato de Legado da Apple.
Ainda assim, existem limitações importantes. Quando o conteúdo tiver valor
patrimonial comprovado, não poderá ser simplesmente excluído. E,
tecnicamente, backups automáticos em nuvem, dados em servidores
estrangeiros e recuperação forense podem preservar informações mesmo se
houver tentativa de exclusão.
Nada garante
“Para maximizar a proteção, recomenda-se uma abordagem combinada que
inclua testamento específico com disposições claras, uso de criptografia,
configuração adequada das ferramentas de gestão das plataformas, criação de
contas separadas para conteúdos sensíveis e nomeação de pessoa de extrema
confiança como inventariante digital. É fundamental observar que a eficácia
dessas medidas pode ser questionada judicialmente”, diz Russomanno.
Bruno Batista, da banca Innocenti Advogados, confirma que é possível
segregar os conteúdos digitais com antecedência, evitando que seja feita uma
busca invasiva, ou ainda indicar no testamento a pessoa responsável pela
segregação dessas informações e pelo arrolamento no inventário. Mas ele faz
um alerta:
“Como ocorre com outros tipos de bens, evitar que as informações sejam
acessadas para sempre e por quaisquer pessoas nos parece impossível. Se há
registro de informação, essa informação será acessada invariavelmente,
restando ao titular escolher de antemão por quem ela será acessada.”
REsp 2.124.424